quarta-feira, 25 de junho de 2008

A CIDADE CARECA

in DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 28 de Julho de 1935, 1ª página

«A CIDADE CARECA - Vão ser cortadas em Lisboa mais de 110 árvores e entre elas ainda algumas da Avenida da Liberdade, do tempo do Passeio Público»

«Que espécie de gente será esta que vive em Lisboa - e pior: que manda em Lisboa - tão apostada sempre contra as árvores?! Que mal podem fazer as árvores, maravilhas da Natureza, a certa gente que tanto e tanto as odeia?! Porque, no fundo, se não há uma razão máxima de perigo ou de utilidade para o Homem, só por ódio se compreende que um homem possa cortar ou mandar cortar uma árvore. A teoria peregrina de que se cortam e queimam árvores por estarem doentes e para não pegarem a doença ás da mesma espécie não convence ninguém de bom senso. Nesse caso, e pelo mesmo raciocínio, a Direcção-Geral de Saúde tinha de mandar matar e queimar todos os pestiferos, os tifosos, os tuberculosos, todos os que tivessem, numa palavra, molestia contagiosa. E os médicos passariam a ser magarefes ou carvoeiros. A Câmara Municipal de Lisboa parece não pensar desta maneira, e mandou que se derrubassem, a golpes de machado, mais 110 (!) árvores da cidade, que estão na Avenida Almirante Reis, Calçada de Carriche, Largo do General Pereira de Eça nessa Avenida da Liberdade, a que se poderia chamar, mais propriamente, Avenida Mártir. (...)

«As razões - queira-nos a CML desculpar a franqueza - são outras. São as mesmas que levam Lisboa a ser uma das cidades menos arborizadas da Europa; a não ter parques; a ter uns jardinzinhos raquiticos, assim uma espécie de pátios mouriscos... São as mesmas que mandaram, na Figueira da Foz, por exemplo, rapar á escovinha certas ruas lindamente arborizadas, sob o pretexto de que as pobres atiravam ás casas a terra! E as mesmas que imperaram no recente vandalismo de Coimbra, quando escanhoaram todo o cais, em frente ao Hotel Astória. E as que determinam a fúria contra os gigantes, saudáveis e salutares eucaliptos de estrada do Alentejo. São as mesmas razões que levam os berberes e os seus irmãos de Portugal á ulmeirofobia, á plantonofobia, a todas as fobias contra e qualquer árvore que vejam em diante. (...)

«Se a CML, de cada vez que manda decepar uma árvore, mandasse plantar um cento por essas ruas, avenidas e colinas, ainda se remia um pouco das suas culpas e das câmaras que a precederam. Mas não o faz. E dentro em pouco os estrangeiros e os portugueses que não são berberes chamarão a Lisboa tristíssimamente... a Cidade Careca.»

FOTO: Ama com criança na Av. da Liberdade, 1912. Imagem de Joshua Benoliel (1873-1932). Fonte: Arquivo Fotográfico Municipal

Com este artigo de primeira página de 1935, corajosamente crítico para a época, iniciamos a série "A CIDADE CARECA" onde iremos reflectir sobre a importância da arborização dos arruamentos da nossa cidade. Também alertaremos para os maus tratos e falta de protecção das árvores de alinhamento. Tudo porque ainda existem muitas ruas carecas em Lisboa...

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