Director-geral do Património afirmou que não faz sentido classificar a principal avenida de Lisboa. Chovem críticas severas, mas há quem compreenda a posição defendida por Elísio Sumavielle
Manuel Villaverde aponta as varandas de fino rendilhado de um edifícios oitocentista da Avenida da Liberdade: "Será que isto é alcatrão?!". Mais adiante entra noutra imponente mansão e mostra o antigo elevador ainda no sítio, os tectos de estuque, os gradeamentos de ferro trabalhado a suportar o corrimão de madeira: "Este edifício também ainda está todo completo. Também é alcatrão?!"
No início de Agosto o director-geral do património, Elísio Summavielle, declarou numa entrevista ao PÚBLICO a sua intenção de abandonar os propósitos de classificação patrimonial da Avenida enquanto conjunto urbano. Os prédios construídos para os burgueses endinheirados que foram habitar a primeira grande avenida portuguesa têm desde 1989, ano em que foi aberto o processo destinado à sua classificação, uma protecção legal resultante de estarem em vias de classificação, que desaparecerá no final do ano. Isto porque a Direcção-Geral do Património tenciona deixar caducar este e outros processos (ver segundo texto). Para Elísio Summavielle, neste momento "é difícil justificar a coerência da Avenida como conjunto" patrimonial, e se alguma coerência existe "limita-se ao alcatrão". Por isso, a classificação seria uma "redundância anacrónica".
A afirmação chocou alguns defensores do património, mesmo tendo em conta que os especialistas que compõem o órgão de aconselhamento da Secretaria de Estado da Cultura nestas matérias, o Conselho Nacional de Cultura, tinha, há cerca de um ano, proposto o arquivamento do processo de classificação. Mas nem esta posição foi divulgada nem se promoveu uma discussão pública que possa fazer alguma luz sobre as consequências de semelhante decisão. Algumas das figuras cimeiras da arquitectura portuguesa desenharam para a Avenida: Norte Júnior, Pardal Monteiro, Teotónio Pereira.
A questão não está em que o património fique ali sem qualquer resguardo legal. Como refere o director-geral do Património, a meia dúzia de imóveis já classificados na Avenida - Diário de Notícias, cinema Tivoli e hotel Vitória, entre outros - tem na maioria dos casos uma ampla zona de protecção que obriga a que também os projectos para obras em seu redor, e não só nos próprios edifícios, tenham de ser submetidos à apreciação da autoridade patrimonial. "A maior parte do espaço da Avenida está hoje abrangido por zonas de protecção de imóveis classificados, o que lhe confere já uma protecção efectiva, o que não acontecia anteriormente", refere Elísio Sumavielle. Por outro lado, acrescenta, "o município possui já instrumentos de gestão territorial que garantem uma evolução mais coerente e ordenada para aquele espaço urbano", nomeadamente o plano de pormenor da Avenida.
O problema é que os especialistas não se entendem sobre se isto chega para evitar a descaracterização - e há os que declaram peremptoriamente que não. É o caso de Manuel Villaverde, um investigador do Instituto de História de Arte da Universidade Nova de Lisboa que conhece as riquezas da Avenida quase como se fossem suas, ou não tivesse apresentado em 2007, em Berkeley, na Califórnia, um doutoramento sobre os boulevards ibéricos. "Aquilo a que estamos a assistir é a um lavar as mãos por parte da administração central, que assim se demite das suas responsabilidades no que respeita ao património", critica, explicando que a Avenida constitui "o primeiro elemento urbano da modernidade portuguesa".
Considerando as afirmações de Elísio Summavielle "lamentáveis", o investigador diz que elas "não têm qualquer rigor", uma vez que há ainda muito para salvaguardar na principal artéria de Lisboa. "Claro que não devemos ser ingénuos e achar que a classificação resolve tudo", reconhece. "Não vale de nada, se não houver uma estratégia de gestão". Para Manuel Villaverde, no entanto, o facto de o Estado desistir de dar esse passo pode até inviabilizar o recurso a fundos europeus de reabilitação patrimonial.
De indignação são também as palavras de Raquel Henriques da Silva, que estudou o trabalho de Ressano Garcia, responsável pelo surgimento desta e de doutras artérias da cidade. A historiadora de arte considera escandalosa a afirmação do director-geral sobre a falta de coerência fora do alcatrão. E explica porquê: "Trata-se de um belo traçado, com a pequena escala do melhor urbanismo lisboeta. Herdou e ampliou o Passeio Público de fundação pombalina. Foi e é palco de mais de um século de história, simbolizando, com euforia, a nova Lisboa nascida do liberalismo oitocentista, gerando uma nova imagem da cidade que até ao terramoto sempre crescera ao longo do rio". Estranhando que Summavielle "proclame a subalternização e a desqualificação daquilo que ele gere politicamente" - o património - Raquel Henriques da Silva admite, contudo, que um plano sectorial rigoroso defende com mais eficácia a Avenida do que uma mera classificação.
De preocupação são igualmente as palavras de Paulo Pereira, alguém que já ocupou funções idênticas às de Elísio Summavielle. Mesmo reconhecendo a descaracterização resultante de obras autorizadas nas últimas décadas do século passado, e que foram desde a pura e simples substituição de edifícios antigos por prédios com fachadas inteiras de vidro até à colocação de "chapéus" de mais três ou quatro andares em cima dos velhos prédios, o ex-vice-presidente do instituto do Património considera a classificação "um instrumento de trabalho muito importante para a Câmara de Lisboa", evitando situações menos dúbias e decisões casuísticas. "Mas cada vez mais a administração central se exime das suas competências de protecção do património", lastima. O argumento das zonas de protecção em redor dos imóveis classificados e do plano de urbanização não o convencem: "O plano tem uma intensidade legal baixa, e os imóveis inseridos nas zonas de protecção não têm o mesmo estatuto dos que estão classificados". Risco? "O de uma maior descaracterização, mesmo que a câmara não ceda facilmente a tentativas de desvirtuamento". Mas é natural que haja quem se oponha à classificação: "Significa menos receitas para o Estado, por via da isenção do IMI".
Membro do movimento cívico Forum Cidadania, Luís Marques da Silva não tem dúvidas sobre o objectivo de uma decisão como a de deixar cair a classificação: "Promover a especulação imobiliária". No entender do movimento, existem na zona 40 imóveis com capacidade para serem classificados. "Os edifícios mais caros das principais cidades europeias são aqueles que foram recuperados", assinala o arquitecto.
Autor do plano de urbanização da Avenida, Manuel Fernandes de Sá não se opõe à classificação. Mas pensa que as regras de intervenção que fixou são suficientes. O plano divide o património em três escalões: valor elevado, valor relevante e valor de referência. No primeiro caso, correspondente a edifícios classificados ou merecedores do prémio Valmor, não é permitida a alteração do número de pisos, sendo apenas admitidas obras de conservação e reabilitação. Nos restantes tudo depende da apreciação da câmara. Se a classificação fosse por diante a decisão final caberia ao instituto do Património, como sucedeu, aliás, no último quarto de século.
Especialista em conservação do património, Simonetta Luz Afonso mostra-se optimista: "As pessoas não são estúpidas ao ponto de não perceberem a mais-valia que traz este património". A presidente da Assembleia Municipal de Lisboa pensa que existem instrumentos que salvaguardam a avenida das atrocidades do passado. "Há lá prédios que eu implodiria já amanhã", observa. Mais do que "congelar a Avenida", Simonetta defende a necessidade de a revitalizar, recriando o espírito do antigo Passeio Público e reduzindo substancialmente o trânsito.
Os mamarrachos deixados erguer nas últimas décadas levam igualmente o historiador Sarmento de Matos a defender que a classificação dificilmente é uma opção neste momento. O olissipógrafo levanta uma questão central: os encargos que a manutenção destes edifícios implica para os proprietários. "Não lhes podemos impor ónus brutais sem lhes dar compensações". Por outro lado, uma classificação massiva como a que estava prevista não é compaginável com um quadro de funcionários públicos cada vez mais magro, adianta. Quem analisaria os processos de obras? Quem fiscalizaria o cumprimento das regras?
Sobre esta matéria o PÚBLICO tentou ainda ouvir a Câmara de Lisboa, mas ninguém se mostrou disponível para prestar declarações.
Manuel Villaverde continua a subir a Avenida, imparável: "Aquela casa do outro lado da Avenida era do Alfredo Keil, o autor do hino nacional, que se mudou para aqui em 1870. Aqui morava o alfaiate da corte mais acima um grande fabricante de pianos..."
Dezenas de edifícios ameaçados
Por Ana Henriques in Público
Tal como a Av. da Liberdade no seu conjunto, há dezenas de edifícios de reconhecido valor patrimonial no resto da cidade - e também país fora - cujos processos de classificação caducam no final do ano, graças a uma lei do tempo em que Elísio Summavielle era secretário de Estado da Cultura.
O sucessor de Summavielle, Francisco José Viegas, tem garantido que não haverá património em risco a partir de 2013, mas nunca explicou se vai ser necessário proceder a mais uma prorrogação de prazos, como sucedeu nos últimos dois anos, uma vez que é impossível aos serviços despacharem a tempo as cerca de cinco centenas de processos ainda por resolver a nível nacional.
A estação do Cais do Sodré, de Pardal Monteiro, é um desses casos, tal como a estação fluvial de Sul e Sueste, de Cottinelli Telmo. Igualmente desenhado por Pardal Monteiro, o hotel Ritz - que chegou a ser alvo de um projecto de transformação de Siza Vieira que nunca foi aprovado, e que incluia a construção de mais duas torres no embasamento original - faz parte deste lote, tal como o antigo liceu Camões, que aguarda uma intervenção da Parque Escolar.
A sede do Instituto Nacional de Estatística, nas imediações do Instituto Superior Técnico, desenhado por Arsénio Cordeiro, é outro imóvel em vias de classificação, tal como o edifício da Imprensa Nacional - Casa da Moeda, situado na mesma zona. Mais adiantada está a classificação do Palácio da Mitra, na zona do Beato, embora ainda não tenha sido publicada em Diário da República a sua protecção. A aguardar classificação e em risco de caducar o processoencontram-se ainda as gares marítimas de Alcântara e Rocha Conde de Óbidos, bem como a penitenciária de Lisboa. Elísio Summavielle tem dito que prioritário, mesmo, é o alargamento área classificada da Lisboa pombalina, também em risco de caducar no final do ano
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