"As pessoas querem classificar como património o que lhes está mais próximo"
Por Isabel Salema e Lucinda Canelas in Público
Por Isabel Salema e Lucinda Canelas in Público
Na primeira entrevista, a nova directora-geral do património diz que a aprovação de projectos de reabilitação pelas autarquias não é um alienar de responsabilidades. A gestão de proximidade traz mais capacidade de intervir e de valorizar
Isabel Cordeiro chegou à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) há três meses. Até há pouco tempo directora do Palácio Nacional de Queluz, com uma larga experiência na área dos museus, a nova directora do património prepara-se para abrir cerca de 40 concursos para as chefias da maior instituição da área da Cultura, que tem quase mil funcionários. A nova direcção-geral, acabada de criar para agregar os desaparecidos institutos do Património e dos Museus e a Direcção Regional de Cultura de Lisboa, tem a seu cargo a gestão directa de museus e palácios nacionais, bem como do património mundial, e a supervisão de quase 3700 imóveis classificados.
Isabel Cordeiro, de 46 anos, diz que tem a responsabilidade de construir um cenário diferente para o património para daqui a dez anos e que este é o momento de separar as águas, depois do muito que se investiu nas últimas décadas: "Temos de ser mais polivalentes, ter mais capacidade de liderança e de competir."
"Incorrigivelmente optimista", a directora-geral admite que um dos seus grandes desafios é, agora, o de garantir uma coesão entre todos aqueles que protegem o património. "Não vejo diferenças entre ser arqueólogo, museólogo, gestor de monumento, conservador-restaurador ou director de museu. Acho estas divisões absolutamente perniciosas para uma evolução que temos de conseguir fazer."
Com um fim de ano marcado por uma maratona de classificações, diz que o que as pessoas, as comunidades, querem ver protegido pela instituição que escolhe os monumentos nacionais é tudo o que tem a ver com os afectos, os sentimentos, as memórias - o que está mais próximo.
Houve uma imensa leva de classificações. Quantos bens foram classificados desde que chegou, em Novembro, à Direcção-Geral do Património Cultural?
Em Novembro, estavam 648 processos de classificação por instruir. Foi feita uma triagem para decidir quais deixaríamos cair - foram perto de uma centena - e quais os que levaríamos até ao fim. Publicaram-se 160 portarias em Novembro e Dezembro. Desta massa de 648, havia uns que não caducavam e 171 estavam já em fase de consulta e, nesse âmbito, os prazos foram prorrogados.
Parecia que o país inteiro estava a ser classificado... Perguntaram-se se estariam a classificar bens a mais?
Obviamente, ponderei essa questão. São mares de dossiers. Faz todo o sentido que se discuta mais a diferenciação entre os níveis de classificação: monumentos nacionais, interesse público e interesse municipal. Falta uma clarificação absoluta entre os dois últimos. Há tendência para as pessoas subirem na hierarquia da classificação.
Imagine que, daqui a dez anos, olha para esta lista de classificações: o que é que ela diz sobre o que se quis proteger?
À partida, os referenciais absolutos de cultura, aquilo que mexe com a nossa identidade, aquilo que tem valor de excepcionalidade. Esse é o primeiro nível.
Fazendo a pergunta de outra maneira: pela análise do património que aqui chega com proposta de classificação, o que é que mais preocupa as pessoas, o que é que não querem perder?
O que está próximo, nas comunidades, no território. Tudo isso mexe com os afectos, com os sentimentos, as memórias. Em qualquer nível de classificação, estas coisas contam.
Por exemplo...
Na questão das batalhas, das fortalezas, dos castelos, dos castros e até mesmo de uma anta ou de um menir. Se quisermos fazer uma leitura mais distante e transversal, penso que da lista também ressalta uma preocupação de valorizar o património no seu conjunto, desde as componentes arqueológicas mais remotas até à arquitectura do século XX.
E na lista do património classificado pela DGPC também é possível identificar modas, tendências?
Sim, claro. Chega a existir algumas circunstâncias de gosto. Há os pelourinhos, as pontes... Vai ser um trabalho muito interessante construir as grandes tipologias temáticas do classificado e divulgá-las dessa forma. Esse trabalho dá uma visão muito clara do que quisemos proteger.
Já há muito pouco por classificar, no nível do património nacional?
Os conjuntos merecem um olhar porque nos permitem valorizar realidades mais difusas. Estou a lembrar-me, por exemplo, das Minas de São Domingos ou da Avenida da Liberdade.
O que é que se passa com a Avenida da Liberdade em Lisboa?
Foi apenas iniciado o procedimento de classificação, mas, na verdade, ele remonta a 1987. Desde aí para cá, alguns imóveis foram classificados individualmente. Depois de ouvidos uma série de personalidades e o conselho do património arqueológico e arquitectónico, decidiu-se avançar com o processo de classificação como conjunto, como valor de paisagem na malha urbana.
A nova lei da reabilitação urbana passa algumas competências de aprovação de projectos para as autarquias. Isso levantou críticas, porque não há directrizes padronizadas. Que balanço faz?
É preciso ver que há um pressuposto de articulação entre a DGPC e as autarquias na elaboração dos planos de pormenor e de salvaguarda...
Mas, às vezes, esses planos ainda não existem.
Precisamente por isso é que esta articulação é importante.
Por exemplo, o Arco da Rua Augusta, em Lisboa, teve muito trabalho de técnicos da casa. Agora, pessoas como o arquitecto Alves Costa vêm dizer que muito do know-how se perdeu e não foi seguido pela autarquia. O que aconteceu?
Estamos precisamente a trabalhar com a autarquia para definir, primeiramente, uma intervenção de conservação e restauro, que tem um projecto que chegou há muito pouco tempo e que tem de ser analisado aqui. Está a ser definida a logística de ocupação de via pública e de montagem de estaleiro para começar a intervenção. Vai ser cumprido o primeiro projecto do arquitecto Alexandre Alves Costa.
Ao mesmo tempo, está a ser preparado um protocolo de cedência à CML das intervenções de conservação e da exploração do monumento. Para além disso, há a velha questão das acessibilidades [o elevador] que está em estudo. Estamos a trabalhar em conjunto.
Alguns dos 16 ou 17 monumentos que estavam afectos à antiga Direcção Regional de Lisboa e Vale do Tejo e que agora passaram para a DGPC estão a ser transferidos para as autarquias: é o caso do Convento de Jesus, em Setúbal, da Sé de Santarém... Uma gestão de proximidade traz muitas vezes uma capacidade mais directa de intervenção e valorização. Agora, isso não quer dizer nunca um alienar das responsabilidades - são imóveis classificados. Temos responsabilidades de acompanhamento e de autorização.
Muitas dessas coisas são frágeis, o que quer dizer que qualquer intervenção realizada é depois muito difícil de desfazer...
Não se trata de desfazer, porque ela tem de ser previamente aprovada. Não há aprovações a posteriori, quando se trata de património classificado.
Há um aumento das classificações, uma diminuição dos quadros de pessoal. E ainda os licenciamentos em zonas especiais de protecção?
Há menos obras e, por isso, menos processos a carecerem de avaliação. Os de Lisboa e Vale do Tejo vêm aqui, os de todo o resto do país são instruídos pelas direcções regionais e, no fim, recebem um parecer vinculativo da nossa parte. Os processos são analisados para confirmação - não se assina de cruz. Depois são inseridos no portal online.
O que é que falta classificar?
Devemos olhar para o património do século XX. Aí há coisas que julgamos já estarem classificadas e que não estão.
Como por exemplo...
A Reitoria da Universidade de Lisboa, os edifícios das faculdades de Letras e de Direito. Se me perguntassem há três meses, diria que estavam classificados. É o ano da arquitectura, temos arquitectos absolutamente de excepção...
Faz sentido classificar obras de pessoas vivas?
Penso que sim.
Já temos distanciamento suficiente para isso?
Não pode haver uma precipitação, mas também não podemos deixar passar tanto tempo que não reconheçamos o seu impacto... É muito importante que o factor de identidade e de memória seja valorizado com aquilo que é a produção contemporânea. Não temos de ficar em 1950.
O gosto não interfere?
Interfere em qualquer época.
Em relação ao Orçamento do Estado (OE), o que estava previsto era um corte de 23%, por causa, precisamente, da passagem dos 15 museus para as direcções regionais. Quanto dinheiro vai ter para gerir em 2013 e que parte dessa verba é para investimento?
Já houve cortes significativos em 2012. Em 2013, a realidade com que temos de trabalhar, já com fundos comunitários, anda perto dos 40 milhões. Cerca de 13 são receitas próprias e 19 milhões vêm do OE. Cerca de 6,8 milhões são para investimento. O que é extremamente importante é 39% sejam receitas próprias. Estes monumentos e museus têm também uma importância económica.
Os cortes no investimento vão deixar projectos para trás?
A suborçamentação crónica é uma tendência da última década. Não podemos continuar a trabalhar a pensar na dotação do OE. Há um novo paradigma. Temos de aumentar as receitas próprias para diluir o peso do OE, de pensar em fontes de financiamento alternativas. O mecenato existe e, independentemente de ser mais consistente ou mais pontual, faz uma grande diferença na programação de museus e palácios. Mas há outras fontes alternativas, como os fundos comunitários do QREN. Veja-se as rotas dos mosteiros, o mecenato da Cimpor para o restauro da charola do Convento de Cristo.
Nos museus, essa capacidade aplica-se, quase em exclusivo, ao Museu Nacional de Arte Antiga, ou não?
Também ao Museu do Chiado, ao Palácio Nacional de Mafra, ao Convento de Cristo. Os grandes monumentos têm capacidade para atrair fontes de financiamento externas para a reabilitação, conservação, investigação científica...
O que é que vai acontecer ao Museu de Arqueologia (MNA)? A solução da Cordoaria foi definitivamente abandonada?
O MNA está onde está e vai comemorar os seus 120 anos. A questão da Cordoaria não está equacionada, neste momento.
A arqueologia não está representada na direcção da DGP. Esta é uma área em perda?
Antes, nada na orgânica estava orientado para a arquitectura. Nos tempos que correm, não podemos ser tão territoriais e sectaristas. Foi minha absoluta preocupação não ficar refém de uma orgânica. O que está para trás, está para trás. Como costumo dizer, trabalho com adquiridos. Não sinto absolutamente nada a perda de protagonismo de uma área em detrimento da outra.
Toda a gente a vê como uma pessoa dos museus...
Porque trabalhei em museus metade da minha vida profissional. O regulamento de trabalhos arqueológicos está concluído e está neste momento a ser apresentado ao secretário de Estado.
Qual é aqui o seu maior desafio?
Criar uma relação de proximidade acrescida com as equipas que estão nos museus e monumentos dando-lhes, porém, autonomia funcional.
O que é que isso significa?
Que os dirigentes têm capacidade de elaborar propostas, encontrar parcerias, e a responsabilidade de incorporar no seu trabalho competências de gestão hoje indissociáveis do património. As equipas são boas. Temos de confiar nelas ou então mudá-las. Internamente, temos de conseguir pôr as equipas dos serviços centrais a reflectir, a sistematizar experiências e conhecimentos e a divulgá-los para o exterior. Diria que a disponibilização da informação é estratégica. Tem de chegar actualizada a toda a gente. A importância do inventário nas suas várias componentes é central. Um dos grandes desafios são as relações internacionais entre instituições que foram decaindo nos últimos sete ou oito anos, por força das circunstâncias e da escassez de recursos. As relações internacionais têm de se cultivar, como a amizade. Temos de tentar voltar lá.
Foi precisamente no inventário do património móvel que começou. Como vão ser as equipas daqui a dez anos, quando a sua geração estiver a sair?
Bom, nós ainda somos novos. Tenho uma visão incorrigivelmente optimista. Há sectores muito deficitários, como a conservação e restauro, em que o trabalho está alicerçado em parcerias com as universidades. Essa é uma área importantíssima e emergente para a continuidade da investigação científica em sectores-chave. Mas há pessoas muitíssimo válidas que ainda lá estão a dar o litro, e isto tem de ser dito, senão ficamos num culto miserabilista de fim de época. Vamos ter de ser mais polivalentes, ter mais capacidade de liderança e de competir por fontes de financiamento. E outro factor crítico de sucesso é a coesão entre todos aqueles que gerem património. É por isso que não vejo diferenças entre ser arqueólogo, museólogo, gestor de monumento, conservador-restaurador ou director de museu. Acho estas divisões absolutamente perniciosas para uma evolução que temos de conseguir fazer. Temos a responsabilidade de construir um cenário completamente diferente para daqui a dez anos. Acredito que este contexto é muito propício para clarificar águas.
Foto: Palácio Nacional da Ajuda, sede da SEC e da Direcção-Geral do Património Cultural
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