"Os Artistas Unidos vão ter um teatro: dentro do Jardim Botânico. O fim da vida sem-abrigo É MUITO bonita, um luxo mesmo, a casa que finalmente, após nove anos sem tecto, os Artistas Unidos encontraram. É quase perfeita. «Mas é a bilheteira o sítio mais importante», garante Jorge Silva Melo, o director artístico da companhia de teatro que fundou há quinze anos e que, em Agosto de 2002, perdeu o espaço de A Capital. «Há uma frase de uma agente literária inglesa, Peggy Ramsay, que dizia que o box office é a única coisa romântica que há no teatro».
Silva Melo concorda com a definição, no que ela se refere ao romantismo como abandono ao destino: a caixa registadora não se enche se chove ou se há um derby, por exemplo. A bilheteira, no Teatro da Politécnica, é um balcão preto, como é o interior das duas belas salas de espectáculos arquitectadas por Patrícia Barbas, onde foi respeitada a arquitectura oitocentista de pavilhão de jardim, no espaço que esteve muitos anos a servir de cantina à Faculdade de Ciências. Janelões robustos em ferro que deixam ver a vegetação do Jardim Botâncio, na rua da Escola Politécnica, e que durante o dia vão permitir aos actores «essa coisa maravilhosa de podermos ensaiar com luz do dia». E serão estes janelões o ícone dos Artistas Unidos que abandonaram a condição de sem-abrigo. A sala principal, a que só falta pintar o tecto, pôr os projectores e colocar a régie e a bancada de 110 lugares, rege-se pelo modelo clássico, «tudo como deve ser». Uma cena e uma plateia, frente a frente.
A partir de 19 de Outubro, data da inauguração, nesta sala haverá espectáculos em permanência. Não se Brinca com o Amor, do Alfred Musset, é a peca inaugural «É um texto de 1830, que em princípio não seria para este espaço porque pensei fazer aqui, sobretudo, dramaturgia contemporânea». A peça fará uma digressão em Setembro antes de chegar triunfal a casa. E foi escolhida pelo seu carácter de 'à frente do seu tempo': «Em 1830, nenhum teatro ousou encená-la porque era demasiado complexa para os meios técnicos da altura». Estrearia 70 anos após a morte do autor. «Arrancamos com uma peça do chamado 'Teatro Impossível', que é muito o que gostaríamos de fazer aqui: as peças que mais ninguém quer, as peças que foram recusadas, muitas vezes de autores nossos contemporâneos». A Farsa da Rua W, do irlandês Enda Walsh, é o espectáculo que se segue, a 30 de Novembro.
A sala contígua, com o mesmo tamanho, que não terá equipamento fixo, será inaugurada com uma exposição de esculturas em aço de Angelo de Sousa, recentemente falecido. E nesta sala de ambiente tropicalista (vê-se ao fundo as palmeiras) serão feitas palestras, cursos, exposições e espectáculos mais experimentais, para não mais de 30, 40 espectadores. Aí estreará em Janeiro, Herodíade, uma peça de Giovanni Testori «um autor católico de que gosto muito, cujo texto vai ser editado na Assírio & Alvim». Em Fevereiro, a 'Sala das Janelas', assim designada pela grande exposição à luz natural, terá uma exposição de Costa Pinheiro. E no varandim nas traseiras desta sala, entre Março e Outubro, «vamos ter óptimas salas de trabalho, em pleno ar livre, trazemos para aqui os computadores. Vai ser óptimo». É aqui que Silva Melo pretende passar grande parte do dia, das 9h da manhã, porque mora perto, até às 21h, porque se deita cedo, mas gosta de ver a entrada do público, «para ver se vêm muitos», brinca.
Horários à inglesa
Como as salas não podem ter espectáculos em simultâneo, por causa da contaminação de sons, na 'Sala das Janelas' os espectáculos são às 19h, o que se justifica nesta zona «onde as pessoas podem ainda disfrutar do ar livre e do jardim». Um horário de teatro à inglesa. Ao fim do dia de trabalho. «E depois, nos dias de estreia podemos sair todos contentes para cear e comer rosbife, ou suicidarmo-nos se a coisa correr mal». E essas estreias rompem com a tradição portuguesa: serão às quartas, não às quintas. As matinés, «que são importantes para um público da minha idade, que já não está para sair à noite», diz Silva Melo, passam a ser sábado às 16h, havendo outro espectáculo às 21h. O que permite que o público aproveite o comércio local da Rua da Escola Politécnica cheia de cafés e lojas trendy. Ao domingo, respeita-se o descanso católico. Durante três anos, renováveis, o Teatro da Politécnica tem estes locatários, que pagam à Reitoria da Universidade de Lisboa uma renda anual de 40 mil euros. Para satisfazer o senhorio, os fornecedores e garantir o pagamento a uma média de 30 pessoas por mês (só 12 fazem parte da companhia em permanência), a empresa Artista Unidos tem que manter a bilheteira a funcionar bem. «Os bilhetes são a 10 euros, um preço muito justo, e vamos tentar evitar a praga dos convites. Toda a gente quer vir ao teatro com convite, mas não se importam de pagar o café». A companhia tem um apoio quadrienal do Ministério da Cultura (que está no fim) e um outro atribuído à compra de equipamento, mas que ainda não foi entregue. A Gulbenkian apoia a compra da bancada da sala principal e a Câmara Municipal de Lisboa entrega 30 mil euros ano para actividades. Para tudo dar certo, os actores são também faz-tudo. Discutem as obras, tratam da contabilidade, e vão ser eles a limpar o chão e as casa-de-banho, tarefas que «dão-nos descanso». «Acho isso muito interessante. No teatro tudo nos interessa Quando estive na Cornucópia, fui durante um ano bilheteiro e posso dizer que adorei».
O fim da vida de cuco
Dos nove anos a saltitar para os palcos dos outros, Silva Melo não faz um resumo de misérias. Diz que é «doutor olissiponense», porque conhece tudo o que é barracão, teatro abandonado, casa caída da Câmara que nem a Câmara sabe que lhe pertence. «Foi uma experiência fantástica, ficámos treinados para trabalhar em quaisquer condições. E foi um prazer sermos convidados para a Guilherme Cossoul, para o Teatro Nacional, para o São Luiz, mas teve um revés: andámos, como os cucos, a pôr ovos nos ninhos dos outros. A levar espectadores a outras casas e perdemos um sítio que nos identificava». Agora numa casa própria, vão poder «retomar a conversa com o nosso público, fazer peças de repertório mais clássico, ou mais experimentais, mudar horários de sessões se os nossos espectadores assim o quiserem». E o encenador diz que recuperou o sentido de orientação: «Quando acordo já sei para onde vou». É atravessar a rua e entrar num sítio com ressonâncias familiares: «Toca-me vir para este antigo teatro, fundado em 1907, que se tornou uma cantina de estudantes e onde eu, em 65, 66 fiz alguma conspiração política: ficávamos no jardim a dizer mal de Salazar». E foi uma altura culturalmente renovadora. «Nikias Skapinakis expôs aqui pela primeira vez e o Rui Mário Gonçalves fez a primeira conferência sobre a arte abstracta em Portugal. Estas histórias interesssam-me»." In Sol (26/8/2011)
Nota: «Uma casa para os Artsitsas», um Jardim Botânico sem Cafetaria-Loja...