"Diz-me, minha alma, pobre alma enregelada, que acharias de ir viver para Lisboa? Deve lá fazer calor, deleitar-te-ias como um lagarto. É uma cidade à beira de água; dizem que é construída em mármore e que o seu povo tem uma tal raiva ao vegetal que arranca todas as árvores. Eis uma paisagem de acordo com o teu gosto: feita de luz e de mineral, com o líquido para a refletir!"
Poucas coisas agradam tanto aos portugueses como citar observações desagradáveis de estrangeiros, de preferência ilustres, sobre o seu país, e estas palavras do francês Charles Baudelaire, publicadas em 1869 em Le Spleen de Paris, parecem dar razão aos que veem na sequência recente de podas e abates o testemunho de uma aversão atávica. Cunharam até, para a caracterizar, o termo "arboricídio" - como em homicídio, ou genocídio, de árvores.
A palavra não é usada na carta-aberta ao novo presidente da autarquia, Fernando Medina, que a recém-criada plataforma Em Defesa das Árvores - que congrega vários grupos e associações (incluindo Fórum Cidadania Lisboa, Quercus Lisboa, Amigos do Jardim Botânico, Plataforma por Monsanto, etc.) - tornou pública na quarta-feira. Mas fala-se em "onda de intervenções radicais e devastadoras que as árvores de Lisboa têm sofrido nas últimas semanas". A saber, "empreitadas de poda, abate e substituição de árvores de alinhamento e de jardim um pouco por toda a cidade, de Alvalade à Estrela, das Avenidas Novas a Arroios, da Graça à Ajuda, com menor ou maior grau de intensidade e número de árvores objeto das mesmas, com mais ou menos gravidade e grau de irreversibilidade, sob esta ou aquela justificação, não poucas vezes caricata, e outras tantas por razões que a razão desconhece".
A ideia da plataforma, que pondera ações em tribunal para impedir abates anunciados, é de que as intervenções descritas não se devem a motivos sérios e ponderados, antes a caprichos e interesses talvez suspeitos: "Cultiva-se a ignorância, acenando com pragas e alergias, velhice excessiva das árvores (quando árvores com 60 anos devem ser consideradas jovens), cataclismos inevitáveis e a corrosão da chapa. Alimenta-se o ódio instalado ao choupo, cipreste, plátano, freixo e, quiçá a breve trecho, à tília, à tipuana e ao jacarandá! Não se percebe de onde vêm os novos espécimes que se plantam, mirrados e sem copa frondosa previsível que não por várias décadas, nem para onde vai a lenha que resulta de tudo isto. De uma assentada, como no caso recente da Guerra Junqueiro, destrói-se a imagem até agora inalterável de um arruamento histórico com 60 anos." in DN, 31 Maio 2015 por Fernanda Câncio
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